A RIGIDEZ CARACTEROLÓGICA
A.Ricardo Teixeira
Várias formas de ser podem compor
o que chamamos de caráter rígido. As bases da rigidez, geralmente, são formadas
por sentimento de culpa e vergonha, necessidade de afirmação do poder pessoal e
pouca abertura para de receber amor. São pessoas que, quando crianças, não
foram validadas na sua força e poder pessoal. Ou viveram em ambientes de
comparação pelos pais. “Sua irmã é muito estudiosa!”. “Sua prima tem um corpo
perfeito!”. “Siga o exemplo do fulano, veja como ele é bem-sucedido!”. “Nossa!
Você demorou tanto a entender isso, seu irmão aprende rápido!”. Etc. Sem falar
em sofrer punições severas quando comete algum deslize. Também há a birra, que
é um comportamento natural em crianças por volta dos dois anos e que costuma
deixar os pais “loucos”. Isso é parte do que forma crenças do tipo: “Não posso
errar” ou “Se eu não estiver sempre certo serei uma vergonha”. E ainda,
“Preciso afirmar meu poder senão serei controlado e desrespeitado pelos outros”.
Então, as atitudes do caráter rígido refletem controle excessivo e um profundo
medo de errar ou de ser “mau”. Como se o seu valor estivesse em obter
resultados, atingir metas e objetivos. Do contrário, serão desvalorizados e
perderão a autoestima. Não sabem validar-se pelo próprio amor.
A rigidez caracterológica cria ideais de perfeição e grandeza que impermeabilizam o ser contra as manifestações espontâneas da vida viva.
Crianças precisam sentir que seu
tempo de se desenvolver é singular, que suas dúvidas e fragilidades são
naturais e que sua dignidade e senso de valor pessoal estão intrínsecos em seu
ser, existindo independentemente do efeito que possam produzir no mundo.
Pessoas rígidas só foram valorizadas pelo que alcançaram como competências.
Nunca pelo que possa brotar espontaneamente como criatividade e amor. Aprenderam
a se validar somente pelos papéis que representam e existem para tal. É a boa
mãe que deprimiu quando os filhos cresceram e foram embora de casa. É o/a
profissional que quando tira férias fica com a cabeça no trabalho ou se
alcooliza a maior parte do tempo pois não sabe viver fora do seu papel.
Isso torna o caráter rígido
fechado para receber. Um agradecimento ou um elogio pode ser racionalizados
como uma manifestação de algo “não-eu”, do tipo: “agradeça a Deus, ao destino, à
sorte, não a mim”. O problema aqui não é a natureza vazia do “ego” mas sim, a
presença de um estado de ego que sofre por não estar aberto para receber,
naturalmente.
Como não se movem a partir do
amor, da criatividade e da espontaneidade, mas sim das metas e objetivos,
tendem a se ver em constante retorno ao esvaziamento de si mesmos que os leva
imediatamente a buscar novas metas e objetivos. Por isso Wilhelm Reich disse
que as metas são traições à vida viva.
Traumas podem estar presentes ou
não nas memórias conscientes ou inconscientes do caráter rígido. O reprocessamento
destes traumas com terapias como EMDR ou Somatic Experiencing, por exemplo,
pode trazer muito alívio e bem-estar, minimizando assim o efeito nefasto dos
traumas. Mas, um passo a mais tem que ser dado na direção da abertura para viver
a vida no presente, desprovido dos anseios que tanto movem pessoas rígidas.
O medo de não estar no controle, os prende mais e mais a suas
defesas caracterológicas. Vivem como se cumprir regras e alcançar objetivos
fosse o viver em si. Vivem atrás de objetivos pois assim podem manter afastados
da consciência a culpa, a vergonha e a inferioridade que sentem na falta de poder
e a sensação de não ter valor e merecimento. Por isso é tão difícil ajudar a
essas pessoas a amar sem controlar, a apreciar o viver em si, como algo
dinâmico e criativo.
A rigidez caracterológica é uma tendência
a ser altamente pragmática e avessa ao erro e ao fracasso. Encontramos pessoas
assim em posições de liderança e domínio. Professores universitários, chefes de
estado, militares, cientistas, profissionais de saúde e educação, ou do Direito,
empresários, enfim, profissionais que visam resultados a curto, médio ou longo
prazo. Quase todos!
Pais rígidos obrigam crianças
pequenas a engolirem a salada que vai lhes fazer bem à saúde mesmo que a
criança faça ânsia de vômito. E ainda ameaçam: “se vomitar, vai ter que engolir
o vômito!”. Como estão baseados em crenças não em processos, não avaliam que
podem estar gerando as bases para um transtorno alimentar. Se orgulham de sua
opressão baseada em crenças e valores morais que não se importam com a singularidade
da natureza humana já presente nas preferências de cada criança. Não acreditam
em autorregulação. Temem que a espontaneidade forme filhos irresponsáveis e incompetentes.
“A vida é dura e você tem que aprender pelo sofrimento”. Importam-se apenas em
alcançar ideais de perfeição.
O caráter rígido, crê que suas
crenças e valores são inquestionáveis e vivem justificando seus equívocos com
racionalizações imprecisas que os afastam, cada vez mais, da espontaneidade. Quando
é analisado, tende a ser mais flexível. Porém, nem sempre, se abre para a
essência do ser.
Alguns conseguem se flexibilizar
através de práticas religiosas, meditação ou autoanálise. Mesmo assim, sua
tendência a dar será maior do a de receber, mantendo o desequilíbrio. Pois elaboraram o medo da punição trocando-o
por desejo de recompensa. Mas, em seu ser há uma incerteza para receber porque
a crença diz que, “para receber devemos merecer”. Isso faz o Caráter rígido poder
ser doador, principalmente para validar sua crença de que tem que ser uma “boa
pessoa” para não visto como uma “má pessoa”. Logo, sua doação está a serviço de
uma crença e não de generosidade genuína, ou do reconhecimento empático de que
o outro tem necessidades que não consegue atender sem ajuda.
A diferença que se pode encontrar
quando nos desfazemos desses equívocos é que entendemos a vida viva como um dom
em si, que não precisa de metas e objetivos. Só precisa se realizar. A razão, a
organização e a hierarquia de procedimentos são meios para que se possa
desfrutar do viver em si. Mas, os rígidos os consideram como um fim em si
mesmo. Como disse um Lama budista: “Se você tem problemas com regras, peça
ajuda. Aqui, o que importa é transmitir sabedoria”. A sabedoria nos liberta da
compulsão que os desavisados pensam em superar através da desobediência. Daí o
conflito entre seguir as regras para obter resultados ou desobedecê-las para
ter liberdade. Ocorre que, na desobediência não encontramos uma liberdade que gere
uma conexão com a vida natural e espontânea. O que encontramos, num nível mais abaixo,
é o medo de ser controlado. A reação ao controle não gera bons frutos mas sim,
outras formas de rigidez que se manifesta como uma constante polarização.
Isso não quer dizer que não
devemos valorizar a necessidade de otimizar métodos e procedimentos, seja para
curar, educar ou evoluir em algum aspecto. O que está em questão é que o
imaginário que acompanha esses procedimentos pode estar contaminado pela busca
de reconhecimento (recompensa), ou medo de punição.
Recompensa e punição podem constituir
uma polaridade que aprisiona a consciência, deixando-nos impedidos de apreciar a vida fora do tempo. Isso
nos mostra que mantemos nossas mentes presas ao tempo quando repetimos o
passado projetando-o no futuro.
“Quero alguém que me queira como
eu nunca me senti querido”. Isso é idealizar um futuro que visa compensar o
passado. Logo, é uma repetição e não uma real abertura para o novo.
O “coração”, termo aqui empregado
como uma dimensão própria e profunda de sentimentos, está ao fundo de cada ação
e pulsa na sua natureza. Se podemos relaxar no que já somos, sem metas,
poderemos sentir amor e o pulsar da vida viva descompromissada dos objetivos.
Não precisamos ser melhores do que somos mas sim, deixar-nos livre para ser o
que já somos. Não é preciso ter méritos para reconhecer-se digno de existir,
amar e ser espontâneo.
Os procedimentos, métodos, técnicas de cura e ensino,
vão sendo otimizados com a finalidade de se alcançar objetivos. Estes são uma
forma de dar praticidade e objetividade à solução de problemas e criação de
novas tecnologias. A finalidade é a criatividade! Na arte, o reconhecimento
público deve ser vivido separadamente do processo criativo. O processo criativo
brota como uma resposta à interação do vivo com o todo.
A importância da disciplina reside
na possibilidade de aprimorar o talento, a capacidade. Não é um fim em si mesmo.
Muitos praticantes de meditação praticam com a intenção de alcançarem o buda em
outra dimensão. Vejo nisso a concretização da fantasia infantil de um ego que busca
manter a ilusão de que existe separadamente e pode ser reconhecido pelo outro.
A razão da prática meditativa, no budismo, é realizar a natureza búdica
(libertar-se) em si. O que pressupõe a cessação da percepção de dualidade.
Manter o foco na disciplina e nas regras é apreciar o veículo mais do que a
viagem. É um produto da rigidez caracterológica que cria suas barreiras para manter-nos
na ilusão de que existimos separadamente. Aqui temos que fazer com que as duas condições
se alternem. A de que existimos separadamente e de que podemos nos
reconhecermos unidos ao todo.
Precisamos do senso de identidade
para dirigirmos um automóvel na posição certa da via, respeitando a regras do
trânsito e chegar ao destino em segurança. Mas, quando lá chegamos, não
precisamos mais pensar nas manobras e cuidados. O senso de identidade motorista
cessa sua importância. Passamos para outra atividade ou a poder ser sem nenhuma
meta ou pretensão. É aí que podemos nos soltar no presente. No agora e apreciar o momento até que novas
exigências da vida nos obriguem a retomar sensos de identidade.
Médicos e psicólogos que
trabalham usando protocolos e procedimentos costumam se queixar de muito
cansaço, desenvolvendo síndrome de burnout, pois não são movidos pela
espontaneidade, criatividade e genuíno interesse amoroso em seus pacientes.
Disciplinaram-se para desenvolver seus talentos e capacidades porém, não
aprenderam a arte de apreciar a vida viva em sua essência, que só se mostra na abertura
para se estar no aqui e no agora, sem tempo. Para isso, é preciso aprender a se
reconhecer fora do tempo. É como dançar totalmente entregue à música e aos
movimentos. É como estar sem ter para onde ir.
Como disse o Dr. Jorge Stolkiner: “O que ocorre é que tudo o
que sabemos é passado. Não é algo novo nesse momento. O passado é o morto. Não
podemos fazer com que floresça o vivo através do morto...
Se estamos aplicando técnicas visando que a pessoa melhore
estamos repetindo as mesmas condições em que o problema se formou. Pois estamos preferindo como seremos no
futuro, quando não estivermos deprimidos, quando não tivermos esse traço
neurótico, quando não sejamos assim... estamos preferindo aquele teórico do
futuro. Isso nega apreço e amor pelo que é, agora. Não amar e não apreciar a
pessoa como ela é, repete as condições originais do problema. Como se pode sair
daí”?
Na relação amorosa pressupõe que
haja abertura, entrega e aceitação do outro e de si mesmo tal qual se é. A
relação em si é uma condição favorável para que brotem novas possibilidades em
ambos quando são capazes de se soltarem de ideias fixas e ideais de segurança
ou superioridade narcísica que molda o caráter da família ideal. O que se busca
aí é o controle do outro e de si mesmo para garantir a posse de uma condição
que restringe em muito as possibilidades de renovação e criatividade. É só
parar para escutar as queixas das pessoas casadas e encontraremos a rigidez
caracterológica agindo contra o medo do desamparo, do abandono, da percepção de
que se existe separadamente. Todo esse apego encobre a percepção de que casais
só podem estar felizes se realmente evoluírem na direção do desenvolvimento da
vida profunda.
O medo que assume várias formas, tais
como: desamparo, abandono, solidão, ou o traumático em si, cujo sofrimento
depende da maneira como o eu se define (crenças) por ter experimentado essas condições,
leva ao controle que sustenta a superficialidade que gera repetição.
A repetição obscurece a possibilidade de que a vida profunda se
manifeste. A repetição visa recriar as condições originais em que nos apoiamos,
através dos mecanismos de defesa que desenvolvemos desde a infância.
O casamento, nos moldes da
rigidez caracterológica, age como uma camisa de força que limita os movimentos
naturais que buscam o florescimento do vivo em dimensões mais profundas. Chega
a ser uma desonestidade para consigo mesmo e com o outro exigir que nossas
parcerias nos tratem da mesma forma, ou de forma oposta, que nossas mães e pais
nos trataram.
A rigidez caracterológica nos
impede de sair desse lugar de guardião da repetição para nos tornarmos autores
de uma vida que desperta para novas possibilidades. Sustenta uma dependência
que exige coragem para ser superada.
Jorge Stolkiner nos alerta para o
quanto vivemos mais entre o passado e o futuro do que no presente. Mostra que
projetamos no futuro, dando uma volta de 180º nos eventos ou condições do
passado visando uma compensação. Se tivemos uma infância pobre, queremos ser
ricos. Se fomos ofendidos, buscamos reparação da ofensa, ou vingança. Se faltou
amor, buscamos alguém que nos ame como nunca fomos amados.
Idealizar o futuro como uma
compensação do passado mostra que não se está aberto para o presente. Isso constitui-se como repetição! Usamos o presente como uma tela onde projetamos o passado e sua
busca de compensação no futuro. Olhar para a tela em branco permite deixar
brotar a criatividade, o amor e a espontaneidade. É assim que a vida viva vai
poder se realizar.
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