domingo, 9 de fevereiro de 2020

Outras faces da vergonha


Nunca me esqueço do dia em que, ainda criança, talvez 5 anos, cheguei na cozinha e descobri
que era capaz de despertar horror na minha mãe através de uma pergunta que, em outras
famílias, pode ser normal. "Mamãe, o quê que é puta, hein"? "Meu filho! Isso é um nome feio,
onde vc escutou isso"? Ah! Foi o tio que falou, respondi. Daí, seguiu-se um diálogo que me
deixou claro que eu vivia em dois mundos. Um é o das palavras moralmente aceitáveis e outro
em que os adultos compartilham seus interesses pelo que não é moralmente aceitável. E
isso poderia variar enormemente. Desde contar piadas escatológicas ou com fins vexatórios
atingindo figuras religiosas ou o próprio Deus, figuras paternas, ou qualquer representante
da Lei, falar palavrões e buscar pornografia, até a secreta revelação de fatos inspirados
nos desejos de transgressão envolvendo fantasias incestuosas, roubos ou mentiras.
Compartilhamento e cumplicidade em experiências e fantasias cheias de prazeres proibidos.
Claro que a reação envergonhada de minha mãe me despertou sentimentos contraditórios tais
como a própria vergonha e uma curiosidade sobre as "putas", ou seja, a sexualidade e suas
diversas implicações. Não é à toa que a vergonha é uma das questões mais importantes à que
me dedico a estudar.
A única vez que vi minha mãe ligeiramente alcoolizada ela ria muito e estava bastante vermelha.
Minha mãe foi para mim um objeto identificatório em que a vergonha é explícita. Já de meu
pai, foi possível formar um eu ideal baseado em grandeza e superioridade. Uma baita defesa
narcísica contra as faltas envergonhadoras. Identificações estas que me causaram angústias e
tomaram bastante tempo de análise.
A vergonha é o divisor de águas que separa os dois mundos. O certo e o errado são vigiados
por esta poderosa guardiã. Numa sociedade cheia de injustiças, agressões e violência
temos uma divisão entre certo e errado, bom e mau, inferioridade e superioridade, ou seja,
dualidades em que alguns se colocam como representantes do bem e se julgam capazes de
julgar e condenar tudo que vai de encontro a sua moralidade reativa. Moralidade esta que
impulsiona desejos "perversos" muito bem retratados nas obras de Nelson Rodrigues. E que
facilmente cede lugar para os impulsos reprimidos a partir da segunda dose de um "veneno
anti-monotonia" qualquer. Um dos autores que melhor explica isso é Vincent de Gaulejac em
"As origens da vergonha". Em suas palavras: "Se a vergonha perdura, é que há algo indizível, um
desconhecimento de seus fundamentos reais. A criança não pode então dissociar a fantasia
da realidade". Esse é um dos motivos que fazem com que muitos adultos evitem fazer terapia
mesmo precisando muito. Continuando: "Nisso que ela experimenta, sente dificuldade em
separar seus próprios sentimentos do dos outros. Cada um vive situações humilhantes, mas
para que a vergonha seja internalizada e se torne um princípio ativo no funcionamento psíquico,
para que os mecanismos de separação acionados pelo sujeito não sejam operantes, é preciso
que algo lhe escape. Esta é a razão pela qual o segredo está sempre presente. Se a vergonha é
indizível, é porque o sujeito procura dissimulá-la, mas é também porque ele não sabe o que lhe
acontece, porque não compreende e não ousa perguntar o que lhe permitiria saber. É porque
sua vergonha pode esconder uma outra, que não é sua, da qual não consegue se desfazer". Esta
é uma condição geradora de angústia que faz o sujeito procurar uma posição defensiva. Uma
delas é devida à vergonha reativa na qual o sujeito engendra para si um "eu ideal" baseado em
onipotência e perfeição. Mas, abaixo desta camada defensiva, esconde-se a própria vergonha,
raivas, ódios, aniquilação, desvalorização, dor, etc. Quando estão presentes condições
sociais desfavoráveis, associadas a perturbações psíquicas, internaliza-se uma condição
desqualificadora na qual a pobreza é percebida como vergonhosa, embora em si não o seja. Ser
filho bastardo, ver a mãe engravidando e apanhando de homens alcoolistas, passar fome e ter
que pedir comida, ser discriminado na escola, trazendo sentimentos de que se é um pária, um
marginal. "A articulação das questões psicoafetivas e das psicossociais produz um verdadeiro
nó de emoções, de angústias, de desejos e de sentimentos que encerram tais pessoas em
conflitos psíquicos inextricáveis". "A vergonha é o desamor por si, é pensar que se é mau por
dentro". V. de Gaulejac. Nestes cenários onde prevalece a pobreza e a agressão, é muito difícil
se construir uma identidade baseada em dignidade. Principalmente porque a criança também reconhece nos pais que se envergonham de si mesmos, afetando significativamente seu projeto identificatório. Neste ponto, a vergonha age como um trauma que se instala incidiosamente deixando o amargo gosto de uma experiência sem solução.
Tanto faz crescer filho (a) de famílias abastadas, ter acesso a educação superior, ou ser de
comunidades carentes, a vergonha estará sempre intermediando as relações sociais. No
primeiro caso, o sujeito se coloca como superior e ao lado da moral mas esconde ou racionaliza
suas transgressões. No segundo, é mais comum que através da introjeção do agressor,
tornar-se tosco, desbocado, descuidado com sua imagem reproduzindo todos os comportamentos
de quem se sente desvalorizado e sem lugar na sociedade. Acontece que a sociedade que
reconhece o lugar de valor para os moralmente corretos também precisa de outros para
representar a degradação social pois no fundo a moralidade pode estar mais a serviço da
vergonha e do sectarismo do que do senso de dignidade. A justiça social fica prejudicada
quando o ego tenta projetar seus aspectos sombrios nos outros. O trabalho que visa resgatar
a identidade de pessoas de comunidades carentes deve ser orientado para o resgate da
dignidade humana independente do poder aquisitivo ou nível sócio econômico. A dignidade
é o principal antídoto contra a vergonha. Além desse, outro antídoto importante é a abertura
para o prazer de viver e amar abertamente. Tanto a dignidade quanto o prazer de viver e amar
abertamente são profundamente afetados pela vergonha quando as identificações parentais
são ambivalentes. A vergonha de pais inferiorizados pela própria condição psíquica ou pelo
contexto social pode gerar uma recusa em querer se inferiorizar, gerando um impulso para ser
diferente. Mas,ao mesmo tempo, causa culpa e traição aos pais que lhes dão um sentimento de
pertencimento. Surge um forte dilema: diferenciar-se ou trair renegando suas origens. Prazer
de viver conquistado pela formação reativa contra a vergonha sem dignidade não é percebido
como autoconfiança pois não há senso de merecimento. Muitas pessoas que superaram a
pobreza se envergonham de ser ricos pois ainda estão presos na trama da vergonha. Porisso muitos herdam fortunas e gastam tudo até empobrecerem novamente. uma coisa é ser rico, outra é sentir-se digno das riquezas desta vida.