segunda-feira, 27 de março de 2017

A coragem para se entregar

A essência do processo: desencouraçamento, elaboração e ressignificação
O termo psicoterapia reichiana abrange um amplo espectro de formas de intervenção que se definem por escolas independentes, mas que falam linguagens parecidas. Compreende: Orgonoterapia; Vegetoterapia caractero-analítica; Bioenergética e Core-energético. O elemento comum a estas escolas é o processo de desencouraçamento como meio de superação de problemas emocionais e psicológicos. Couraça é o termo escolhido por Wilhelm Reich para denominar o conjunto de tensões musculares crônicas ou agudas que funcionam como uma barreira de contato com os sentimentos e sensações reprimidos e vinculados à formação do caráter. Usa-se também o termo blindagem caracterológica. Hoje o termo designa também as defesas dissociativas e psicológicas próprias de cada sujeito, com o nome de couraça nervosa. O trabalho da psicoterapia corporal consiste em ajudar o cliente a se libertar de seus encouraçamentos vendo e considerando  corpo, mente e energia de modo complementar e integrativo. O processo de desencouraçamento consiste em liberar o fluxo e a pulsação energética subjacentes ao funcionamento do corpo e da mente, levando o sujeito a uma condição psicológica diferente daquela que se estabeleceu no processo de encouraçamento. Esta condição tem que ser nova para o sujeito que a experimenta e se torna consciente e responsável pela sustentação de uma atitude que o torna capaz de elaborar e  ressignificar suas posições internas diante de seus conteúdos psíquicos: emoções e sentimentos reprimidos, lembranças, traumas, crenças, comportamentos e sensações corporais. 
O processo deve ser conduzido de tal forma que o sujeito vá se tornando consciente e capaz de se implicar na percepção de si mesmo, apropriando-se de seus sentimentos e sensações, ritmos internos de pulsação e fluxo, e se responsabilizando (no sentido de responder por) pela consciência das possibilidades e limites de expandir e contrair. Cada um pulsa e flui de modo único, singular em que as partes cronicamente encouraçadas vão cedendo até que as áreas afetadas recuperem seus níveis próprios de pulsação e significado. 
Apropriar-se do que aquela experiência psicológica representa para si permite a revogação de designeos imaginários que condicionam e perpetuam o sofrimento. A tristeza, por exemplo, que costuma resultar de sentimentos de perda, fracasso narcísico ou culpa, tende a diminuir quando a atitude auto-punitiva inconsciente é revelada e ressignificada pelo eu. Técnicas corporais empregadas para  aumento de energia fortalecem o auto-empoderamento facilitando a autoconfiança e sentimento de potência para se realizar desde seu modo próprio de ser. As armadilhas inconscientes geradas pelo sentimento de culpa agem como ladrões de energia que se rendem ao desmascaramento!
A falta de apropriação e singularização da experiência emocional, sensorial e psicológica, pode levar a angustiantes fantasias de invasão, ataque e/ou submetimento, resultando em formas encouraças de se relacionar que expressam isolamento, superficialidade e controle. Uma mulher pode se reconhecer imatura e incapaz de se relacionar de forma amorosa e profunda pois a única forma de se sentir ela mesma é através de traços de caráter vindos da necessidade de poder  desenvolvidos por identificação com os pais, onde só lhe cabe dominar ou ser dominada, uma vez que entregar-se sexualmente representa, imaginariamente, ser violada na sua precária individualidade, pois seus sentimento e sensações  ainda lhe parecem produções a serem dados ao "outro" em troca de amor e aprovação.  
A relação terapêutica
A relação terapêutica  deve ser pautada por uma intenção clara, definida e assumida pela dupla - paciente e terapeuta - onde toda e qualquer intervenção tem como finalidade e propósito o resgate dos conteúdos reprimidos, a liberação do fluxo energético e o reconhecimento da forma singular com que o sujeito  experimenta a si mesmo. Os principais recursos que sustentam a intenção terapêutica decorrem do amor próprio e do desejo de vida, livres do imaginário narcisista de superioridade/inferioridade. A intenção terapêutica quer promover o viver de acordo com sua capacidade consciente de pulsar e fluir; é como dançar a dança da vida a partir do ser desejante, livre do submetimento a que se impõe o sujeito demandante que emerge na infância mais precoce. 
Caso contrário, a relação terapêutica se sustentará pela posição infantil demandante de "objeto do desejo do outro", onde o cliente vai liberando suas emoções e conteúdos como se estivesse entregando algo desejado pelo "outro" (mãe) em troca de amor. 
Re-encouraçamento pelo discurso normatizador
A formação de psicoterapeutas corporais requer que se invista num tripé de transmissão de conteúdos formativos que são: psicoterapia individual, fundamentação teórica e grupos vivenciais onde as técnicas corporais e psicológicas são experimentadas e elaboradas antes de serem aplicadas aos clientes. Quando os terapeutas estão aptos a iniciarem seus atendimentos, precisarão também de supervisão sistemática e constante. Deve também constar do processo de formação uma questão pouco considerada que é a análise das influencias ideológicas, políticas e religiosas que permeiam as relações humanas e que podem prejudicar a neutralidade com que os terapeutas devem conduzir seu trabalho. Uma das questões mais importantes e prejudiciais ao processo de liberação de couraças é o discurso normatizador, que tenta estabelecer padrões e formas de se relacionar com os outros e com sua própria sexualidade. Até mesmo a difícil liberação de emoções e a capacidade de gritar, rir ou chorar pode cair no conto da normatização que faz crer que só assim se está liberando. Muitos gritam ou choram apenas para se liberar das tensões resultantes de suas contradições internas, mais condicionadas ao desejo do terapeuta (outro) do que ao próprio desejo do sujeito do processo, que precisa estar ciente de que pode contar com o apoio do terapeuta para viver e expressar seus sentimentos. A vida se expressa melhor através de um ser que está livre para ser ele mesmo, mesmo que destoando de preceitos técnicos ou demandas externas.  Desencouraçar-se é se tornar capaz de criar e se reinventar, a partir da percepção de seus sentimentos e sensações e não de se adequar a modelos normatizadores, que seguem critérios ideológicos, políticos ou religiosos.  O medo de perder os freios dados pelo encouraçamento é produto das fantasias de ódio e vingança contra seus algozes internalizados. Viver o mais aberto possível para poder escolher dar vazão a seus sentimentos e desejos implica em também se responsabilizar por seus atos e suas consequências. O auto empoderamento e o implicar-se nas suas escolhas determinam a responsabilidade pelos seus sentimentos, desejos e condutas. Os terapeutas devem ter a mesma consciência desenvolvida em si mesmos para não agirem como se fossem os "donos" da vida dos clientes ou seus mestres, tutores e guias espirituais, mesmo que o desejo de proteção  assim determine. Esta confusão de papéis pode restringir a consciência da liberdade individual causando resistência ou submetimento. Libertar energias reprimidas e depois condicioná-las a padrões de conduta é o mesmo que soltar alguém que está amarrado numa árvore e depois prender-lhe a mesma corda no tornozelo permitindo-lhe apenas caminhar em volta da mesma. O processo de desencouraçamento deve libertar o sujeito para ser dono de si e de seu destino. 

Medo de ser um si mesmo desigual
Aqui enumero algumas razões profundas para se desejar a posição de submetimento em vez da liberdade de ser. A primeira tem a ver com o fato de que nunca desenvolvemos uma independência absoluta pois começamos a existir desde a total e absoluta dependência. O que podemos é desenvolver as capacidades necessárias para realizar escolhas que nos são convenientes ou favoráveis a que possamos viver realizando o que nos faz sentir suficientemente livres e bem.  O desamparo experimentado na infância precisa de elaboração e suficiente superação que só pode vir pelo auto empoderamento e apropriação da energia do corpo e da mente. A experiência de ser livre para se entregar ao que o movimento próprio de sua energia é acompanhada de um desejo de singularização necessária para que se possa confiar e arriscar. Aquilo a que se entrega, sensações de pulsação e fluxo cuja intensidade depende da quantidade de energia, pertence ao sujeito da experiência e não a uma causa qualquer externa. Quando é possível reconhecer isso, o terapeuta está na posição de escuta e apoio para que o sujeito se aproprie do que emerge e não numa posição de quem aprova ou decide se aquilo é bom ou não para o sujeito. A confiança no terapeuta deve evoluir para a autoconfiança, em que o desejo de amparo possa dar lugar ao desejo de experimentar. Para si mesmo e não para o outro. 




quarta-feira, 8 de março de 2017

Wilhelm Reich escreveu um texto que se intitula "Dois tipos narcisistas" onde descreve as duas atribuições opostas do narcisismo secundário que são a superioridade e a inferioridade. São formas de relação consigo mesmo que estão atravessadas pela relação com outro, diferentemente da percepção natural de si mesmo através de sensações e sentimentos, o que chamamos de narcisismo primário. O melhor exemplo do tipo de confusão que o narcisismo secundário pode causar numa pessoa é dado pelo humor, numa antiga charge de Frank&Ernest, publicada no Jornal do Brasil nos anos 1990. Aí vai:
O psiquiatra diz para o paciente: "Você precisa gostar mais de si mesmo." O paciente responde: "Me recuso a baixar meus padrões a este nível." Tal paciente pode muito bem ser diagnosticado como uma vítima do narcisismo secundário.
(Da série: Diálogos internos)
Carta a Narciso I - Escrevo-lhe  para protestar contra o seu domínio. Por não suportar suas exigências descabidas, que condicionam meus sentimentos às suas necessidades de grandeza. Quero me libertar de sua Escola (Narcisismo) que só cultua a superioridade do eu, desprezando toda e qualquer manifestação espontânea e natural do ser humano que é o que eu verdadeiramente sou. Que me agride, através do corpo, impondo terríveis castigos pela fome, trabalhos forçados, necessidade de agradar, pelo sacrifício de prazeres sensuais, fazendo com que eu padeça, mingue,  até  desfalecer. Que, quando em corpo de mulher, impõe os sacrifícios mais torturantes, só para parecer atraente e valiosa, fazendo-a competitiva e simultaneamente derrotada quando se vê em diminuição frente a outras mulheres e homens.  Quando em corpo de homem, rejeita sentimentos e puros desejos fazendo-se lógico, racional e portanto superior. Não aguento mais ter que  distrair você para poder me encantar com as realizações espontâneas do ser-humano-coisa que sou. Que me permitiria amar da cabeça aos pés, sem idealizações que fatalmente fracassam quando você reassume seu poder de ser-crítico-punitivo. Não suporto mais que você me odeie pelo que eu não sou ou não fui.  Volto a sofrer com seus ataques destrutivos quando a imagem que eu reflito não emite o brilho de suas expectativas do que eu deveria parecer para o outro. Chega! Não sou uma fábrica de imagens condicionadas ao desejo dos  outros que você se apropriou, que sequer sei o que pensam. Enquanto ser, sou sim, uma fábrica de sonhos querendo se realizar e sentimentos a expressar. Mas, diante do seu faz-de-conta insuportável meus sonhos perdem a originalidade e não sei mais como me  expressar.  Assinado: 'o-ser' destroçado pelas exigências do deveria ser".