sábado, 28 de setembro de 2019

Auto-apreço, Auto-ataque, Vergonha e Depressão


Auto-apreço, Auto-ataque, vergonha e depressão
                                                                                         Antonio Ricardo Teixeira

Define-se o Auto-apreço como a capacidade de estabelecer consigo mesmo uma relação de bem-estar e segurança, independente de qualquer resultado específico em relação ao comportamento. Por exemplo, acordar e perceber que se dormiu bem, revela uma sensação corporal de ânimo e bem-estar. Este ânimo pode expressar-se através da sexualidade de uma forma positiva, dos afetos ou da forma de ser no mundo pelo trabalho e das interações com os outros. Encontra-se aí uma percepção de êxito e apreço pelo que se experimenta assim como pela forma como se expressa a si mesmo. O auto-apreço difere um pouco da autoestima uma vez que esta se volta para o desempenho, o que implica numa autoavaliação da conduta, seja no desempenho de tarefas ou na socialização. O auto apreço é uma percepção positiva de si mesmo, está no prazer de existir neste mundo, independente de aprovação externa ou interna. É o que Jorge Stolkiner chama de felicidade que é o que surge quando não se tem que ir a parte alguma. Na nossa cultura o auto apreço está condicionado a obter resultados esperados e não somente ao existir sem ter-que. Ou também se pensa equivocadamente o auto-apreço como ideal de grandeza. Este representa uma evocação do narcisismo secundário que se debate entre a polaridade superior/inferior.
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Auto-ataque
O auto-ataque refere-se aos estados emocionais que derivam da introjeção do agressor, que se apropria da autoavaliação criando julgamentos depreciativos ao eu, compondo um estado de ego a que chamaremos de Juiz crítico que, ao invés de pesar e ponderar frente à necessidade de avaliação desfere golpes mortais à autoimagem do sujeito que, muitas vezes se descrevem como estados emocionais devastadores. Quando tais estados são interpretados pela percepção consciente traduzem-se como afirmações negativas auto impostas e validadas pelos estados emocionais. São elas: não mereço que meus desejos se realizem, não sou capaz, não sou digno(a) de amor, sou um(a) “merda”, etc. Mesmo depois de uma boa noite de sono, em que o eu se reconhece com uma boa sensação corporal de descanso e apreço, a simples lembrança das tarefas do dia pode desencadear uma série de auto-ataques que denotam um forte desprezo por si mesmo.
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Vergonha
A vergonha é anterior à aquisição da palavra pois reflete um estado de contração frente ao prazer. É experimentada pelo bebê cujos mecanismos biológicos de sobrevivência o fazem perceber está num ambiente seguro, que compreende sua linguagem biológica no que tange à sua constante necessidade de segurança através do vínculo mãe-bebê. A retração acontece quando o bebê se sente invadido (agredido) pelo ambiente ou deixado só, sem contato, por muito tempo. A esta retração, dependendo do ambiente, podem se agregar estímulos gerados pelo medo constante da mão de que o bebê se machuque ou caia e por um ambiente hostil. Lembrando que até descobrir que se existe separadamente, um bebê não sabe distinguir o que lhe pertence e o que não é seu, constituindo-se pela forma como o ambiente está configurado. Um adulto carrega todas estas memórias sob o registro das sensações corporais cheias de ambiguidades. Sensações corporais estão para a psicoterapia corporal assim como a fantasia está para a psicanálise.  Sendo que a fantasia muda quando a sensação se integra na consciência e se reprocessa. A hostilidade do ambiente se manifestará futuramente como um estado de ego agressivo e/ou auto agressivo. Ao que tudo indica, agressão e negligência podem ser as principais fonte de auto-ataque numa pessoa. A negligência pode variar de grau indo desde a mais pura falta de contato ao máximo da frieza e indiferença para com as necessidades da infância. A negligência e a hostilidade ambiental podem estar associadas aos diferentes graus de dissociação que se manifestam em cada um.
O auto-ataque então pode se desencadear quando a percepção do prazer enquanto sensação corporal é inibida. Surgem na consciência as crenças auto depreciativas para explicar os estados de retenção da pulsação que são percebidas como sensações ruins. Uma área corporal onde mais comumente se sente contraída é o centro do tórax, coração e garganta. É no que Wilhelm Reich chamou de couraça muscular caracterológica que vamos encontrar as especificidades de cada pessoa. Cada couraça revela uma forma particular de auto-ataque, colapso, passividade e agressão  que impedem que a pessoa viva seu potencial apreciável de alegria de viver, percebida através do fluxo livre das sensações e da pulsação energética no corpo, cujo único significado importante é que a pessoa se sente viva e capaz de apreciar isso. Neste estado a percepção pode identificar uma ausência de valoração específica que pode ser entendida como um vazio. Numa mente livre de julgamentos depreciativos, tal vazio vai ser identificado e levar a um reposicionamento ou reorientação de si. Tédio, desamparo ou a ausência de significação podem ser interpretados como perigo de auto reprovação pela mente neurótica mas, pela mente não neurótica pode ser vista apenas como um momento de escolha livre de qualquer auto-ataque. É a partir da percepção destes vazios que ressignificamos nossa existência dando-lhe expressividade. Numa mente julgadora, o vazio desperta polarizações do tipo: certo X errado, bom X mau, superior X inferior, forte X fraco. Uma vez prisioneira destas polaridades, não será possível compreender outra forma de pensar que não seja a sua. O sujeito só se desidentifica destas polaridades quando  percebe que elas são as fontes de suas amarras psicológicas de desprezo e rejeição a si mesmo.  Como até que isso aconteça o sujeito sempre recorrerá às polarizações para se defender das angústias latentes no vazio sem respostas, fará o possível para preservar suas defesas pois o vazio representa uma ameaça de destruição, pois o sujeito se vê ainda como objeto de um agressor imaginário. (Pode haver enganchamentos com agressores externos que justificam a necessidade de se permanecer sempre armados). Ao se desconstruir tais ameaças imaginárias, diferenciando-as de reais, quando existem, é possível então recorrer à auto responsabilização na qual só o sujeito é capaz responder por si mesmo. Reconhecendo-se, como diria J.P. Sartre, como condenado à liberdade, uma vez que o vazio e sua angustiante vulnerabilidade implícita pode ser também percebido como fonte de inspiração. (Numa pessoa que contém altos graus de vergonha, o vazio e a vulnerabilidade inspiram medo, tédio, indiferença, extremo desconforto e autodesvalorização). Enquanto tal compreensão não é alcançada o sujeito, se vendo submetido ao jugo severo de seu juiz interno, busca alento e apreço na precariedade das soluções caracterológicas, em que narcisicamente se expressam. O que sobra enquanto angústia, terá que ser resolvido através do abuso de substâncias, do desejo de ser objeto do desejo do outro, ou do conforto prometido pelo pensamento mágico que impregna o pensamento religioso. ( Este é um tema a ser desenvolvido futuramente). Ou ainda pela busca de poder, na qual prevalece a fantasia de que há um agressor a ser dominado através dos outros. Como se fosse possível preencher todas as faltas através de alguma ação que manipule o outro, para dominá-lo ou para conquistar seu amor.
Ateu Racional e Livre pensar um blog ateu para livre pensadores: Nossos impulsos de agressividade não nos levam a g...
Depressão
A depressão é um tema recorrente em vários quadros psicológicos que contenham sintomas afins. Mesmo nos diversos tipos de ansiedade há possibilidade de que a depressão esteja difusa e se manifeste em momentos específicos em que as defesas não estejam presentes. Faço aqui uma correlação entre depressão e auto-ataque uma vez que o principal componente da depressão é a agressão contra si mesmo. Nesta condição o sujeito tende ao autodesprezo através do fracasso, da culpa e da perda. Mesmo que tenham ocorrido a perda de um ente querido, cujo efeito sentido é a tristeza, um fracasso num relacionamento amoroso, ou o reconhecimento de alguma ação equivocada que tenha causado algum dano (culpa), de nada adianta recorrer ao expediente do auto-ataque pois são situações de vida que requerem reposicionamento e preservação do auto-apreço. É quando temos que fazer um esforço para reorientar nossas escolhas que mais precisamos de uma atitude amorosa e acolhedora.
Uma vez um psicólogo disse ao Dalai Lama, num encontro entre cientistas ocidentais e budistas, que mais de 50% dos ocidentais cultivam algum tipo de desprezo e desvalorização por si próprio. O Dalai Lama ficou impressionado e disse: “Não consigo imaginar como uma pessoa possa não sentir compaixão por si mesma”. Vemos aqui que o auto-ataque é um fator cultural e a depressão é uma das formas mais comuns de manifestação desta falta de apreço por si mesmo que nenhum remédio produzido pela indústria farmacêutica pode resolver. Não foi por menos do que isso que Wilhelm Reich declarou que a verdadeira civilização humana ainda não aconteceu. Viver num mundo onde ninguém se sinta rebaixado pelo outro nem por si mesmo, pelo contrário, se sinta digno de apreço leva a imaginar uma civilização completamente voltada para a realização do potencial criativo inerente em que os declínios não se reduzem a meras manifestações irracionais de destrutividade. Quando os motivos  que levam uma pessoa deprimida a cometer um ato agressivo ao outro (agride ou mata) ou a si mesmo (suicídio) vêm à tona, sempre vemos que aquela situação poderia ser revertida de alguma maneira caso houvesse uma chance. No processo de reflexão à posteriori, agressores e vítimas sobreviventes admitem que aquilo foi um exagero.
Tratamento
Fazer com que uma pessoa depressiva compreenda isso e passe a identificar e rejeitar todas as formas de auto-ataque que foram desenvolvidas ao longo do tempo, é a tarefa de uma terapia/análise que busca êxito. Uma terapia que reconheça a importância de que esse processo seja conduzido através da compreensão dos mecanismos de defesa implícitos na vergonha e dos recursos que as técnicas corporais, incluindo EMDR, podem proporcionar ao promover uma resposta de reorganização neurofisiológica. A ressignificação de sua autoimagem vem de intervenções que agem desde o reprocessamento das sensações corporais e do desenvolvimento da capacidade biológica para fluir e pulsar em conjunto. Sem  ferramentas para dissolver os núcleos emocionais e as sensações mais primárias que fomentam o mal-estar é quase impossível ressignificar e reverter as bases que sustentam a depressão.