Auto-apreço,
Auto-ataque, vergonha e depressão
Define-se o Auto-apreço como a capacidade de estabelecer
consigo mesmo uma relação de bem-estar e segurança, independente de qualquer
resultado específico em relação ao comportamento. Por exemplo, acordar e
perceber que se dormiu bem, revela uma sensação corporal de ânimo e bem-estar.
Este ânimo pode expressar-se através da sexualidade de uma forma positiva, dos
afetos ou da forma de ser no mundo pelo trabalho e das interações com os
outros. Encontra-se aí uma percepção de êxito e apreço pelo que se experimenta
assim como pela forma como se expressa a si mesmo. O auto-apreço difere um
pouco da autoestima uma vez que esta se volta para o desempenho, o que implica
numa autoavaliação da conduta, seja no desempenho de tarefas ou na
socialização. O auto apreço é uma percepção positiva de si mesmo, está no
prazer de existir neste mundo, independente de aprovação externa ou interna. É
o que Jorge Stolkiner chama de felicidade que é o que surge quando não se tem
que ir a parte alguma. Na nossa cultura o auto apreço está condicionado a obter
resultados esperados e não somente ao existir sem ter-que. Ou também se pensa
equivocadamente o auto-apreço como ideal de grandeza. Este representa uma
evocação do narcisismo secundário que se debate entre a polaridade
superior/inferior.
Auto-ataque
O auto-ataque refere-se aos estados emocionais que derivam da
introjeção do agressor, que se apropria da autoavaliação criando julgamentos
depreciativos ao eu, compondo um estado de ego a que chamaremos de Juiz crítico
que, ao invés de pesar e ponderar frente à necessidade de avaliação desfere
golpes mortais à autoimagem do sujeito que, muitas vezes se descrevem como
estados emocionais devastadores. Quando tais estados são interpretados pela
percepção consciente traduzem-se como afirmações negativas auto impostas e
validadas pelos estados emocionais. São elas: não mereço que meus desejos se
realizem, não sou capaz, não sou digno(a) de amor, sou um(a) “merda”, etc. Mesmo
depois de uma boa noite de sono, em que o eu se reconhece com uma boa sensação
corporal de descanso e apreço, a simples lembrança das tarefas do dia pode desencadear
uma série de auto-ataques que denotam um forte desprezo por si mesmo.
Vergonha
A vergonha é anterior à aquisição da palavra pois reflete um
estado de contração frente ao prazer. É experimentada pelo bebê cujos
mecanismos biológicos de sobrevivência o fazem perceber está num ambiente
seguro, que compreende sua linguagem biológica no que tange à sua constante necessidade
de segurança através do vínculo mãe-bebê. A retração acontece quando o bebê se
sente invadido (agredido) pelo ambiente ou deixado só, sem contato, por muito
tempo. A esta retração, dependendo do ambiente, podem se agregar estímulos
gerados pelo medo constante da mão de que o bebê se machuque ou caia e por um
ambiente hostil. Lembrando que até descobrir que se existe separadamente, um
bebê não sabe distinguir o que lhe pertence e o que não é seu, constituindo-se
pela forma como o ambiente está configurado. Um adulto carrega todas estas memórias
sob o registro das sensações corporais cheias de ambiguidades. Sensações
corporais estão para a psicoterapia corporal assim como a fantasia está para a
psicanálise. Sendo que a fantasia muda
quando a sensação se integra na consciência e se reprocessa. A hostilidade do
ambiente se manifestará futuramente como um estado de ego agressivo e/ou auto agressivo.
Ao que tudo indica, agressão e negligência podem ser as principais fonte de auto-ataque
numa pessoa. A negligência pode variar de grau indo desde a mais pura falta de
contato ao máximo da frieza e indiferença para com as necessidades da infância.
A negligência e a hostilidade ambiental podem estar associadas aos diferentes
graus de dissociação que se manifestam em cada um.
O auto-ataque então pode se desencadear quando a percepção do
prazer enquanto sensação corporal é inibida. Surgem na consciência as crenças
auto depreciativas para explicar os estados de retenção da pulsação que são
percebidas como sensações ruins. Uma área corporal onde mais comumente se sente
contraída é o centro do tórax, coração e garganta. É no que Wilhelm Reich
chamou de couraça muscular caracterológica que vamos encontrar as especificidades
de cada pessoa. Cada couraça revela uma forma particular de auto-ataque,
colapso, passividade e agressão que
impedem que a pessoa viva seu potencial apreciável de alegria de viver, percebida
através do fluxo livre das sensações e da pulsação energética no corpo, cujo
único significado importante é que a pessoa se sente viva e capaz de apreciar isso.
Neste estado a percepção pode identificar uma ausência de valoração específica
que pode ser entendida como um vazio. Numa mente livre de julgamentos
depreciativos, tal vazio vai ser identificado e levar a um reposicionamento ou
reorientação de si. Tédio, desamparo ou a ausência de significação podem ser
interpretados como perigo de auto reprovação pela mente neurótica mas, pela
mente não neurótica pode ser vista apenas como um momento de escolha livre de
qualquer auto-ataque. É a partir da percepção destes vazios que ressignificamos
nossa existência dando-lhe expressividade. Numa mente julgadora, o vazio
desperta polarizações do tipo: certo X errado, bom X mau, superior X inferior,
forte X fraco. Uma vez prisioneira destas polaridades, não será possível
compreender outra forma de pensar que não seja a sua. O sujeito só se
desidentifica destas polaridades quando percebe que elas são as fontes de suas amarras
psicológicas de desprezo e rejeição a si mesmo. Como até que isso aconteça o sujeito sempre
recorrerá às polarizações para se defender das angústias latentes no vazio sem
respostas, fará o possível para preservar suas defesas pois o vazio representa
uma ameaça de destruição, pois o sujeito se vê ainda como objeto de um agressor
imaginário. (Pode haver enganchamentos com agressores externos que justificam a
necessidade de se permanecer sempre armados). Ao se desconstruir tais ameaças imaginárias,
diferenciando-as de reais, quando existem, é possível então recorrer à auto responsabilização
na qual só o sujeito é capaz responder por si mesmo. Reconhecendo-se, como
diria J.P. Sartre, como condenado à liberdade, uma vez que o vazio e sua
angustiante vulnerabilidade implícita pode ser também percebido como fonte de
inspiração. (Numa pessoa que contém altos graus de vergonha, o vazio e a
vulnerabilidade inspiram medo, tédio, indiferença, extremo desconforto e autodesvalorização).
Enquanto tal compreensão não é alcançada o sujeito, se vendo submetido ao jugo
severo de seu juiz interno, busca alento e apreço na precariedade das soluções
caracterológicas, em que narcisicamente se expressam. O que sobra enquanto
angústia, terá que ser resolvido através do abuso de substâncias, do desejo de
ser objeto do desejo do outro, ou do conforto prometido pelo pensamento mágico
que impregna o pensamento religioso. ( Este é um tema a ser desenvolvido
futuramente). Ou ainda pela busca de poder, na qual prevalece a fantasia de que
há um agressor a ser dominado através dos outros. Como se fosse possível preencher
todas as faltas através de alguma ação que manipule o outro, para dominá-lo ou
para conquistar seu amor.
Depressão
A depressão é um tema recorrente em vários quadros
psicológicos que contenham sintomas afins. Mesmo nos diversos tipos de
ansiedade há possibilidade de que a depressão esteja difusa e se manifeste em
momentos específicos em que as defesas não estejam presentes. Faço aqui uma
correlação entre depressão e auto-ataque uma vez que o principal componente da
depressão é a agressão contra si mesmo. Nesta condição o sujeito tende ao autodesprezo
através do fracasso, da culpa e da perda. Mesmo que tenham ocorrido a perda de
um ente querido, cujo efeito sentido é a tristeza, um fracasso num
relacionamento amoroso, ou o reconhecimento de alguma ação equivocada que tenha
causado algum dano (culpa), de nada adianta recorrer ao expediente do
auto-ataque pois são situações de vida que requerem reposicionamento e preservação
do auto-apreço. É quando temos que fazer um esforço para reorientar nossas
escolhas que mais precisamos de uma atitude amorosa e acolhedora.
Uma vez um psicólogo disse ao Dalai Lama, num encontro entre
cientistas ocidentais e budistas, que mais de 50% dos ocidentais cultivam algum
tipo de desprezo e desvalorização por si próprio. O Dalai Lama ficou
impressionado e disse: “Não consigo imaginar como uma pessoa possa não sentir
compaixão por si mesma”. Vemos aqui que o auto-ataque é um fator cultural e a
depressão é uma das formas mais comuns de manifestação desta falta de apreço
por si mesmo que nenhum remédio produzido pela indústria farmacêutica pode
resolver. Não foi por menos do que isso que Wilhelm Reich declarou que a
verdadeira civilização humana ainda não aconteceu. Viver num mundo onde ninguém
se sinta rebaixado pelo outro nem por si mesmo, pelo contrário, se sinta digno
de apreço leva a imaginar uma civilização completamente voltada para a realização
do potencial criativo inerente em que os declínios não se reduzem a meras
manifestações irracionais de destrutividade. Quando os motivos que levam uma pessoa deprimida a cometer um
ato agressivo ao outro (agride ou mata) ou a si mesmo (suicídio) vêm à tona,
sempre vemos que aquela situação poderia ser revertida de alguma maneira caso
houvesse uma chance. No processo de reflexão à posteriori, agressores e vítimas
sobreviventes admitem que aquilo foi um exagero.
Tratamento
Fazer com que uma pessoa depressiva compreenda isso e passe a
identificar e rejeitar todas as formas de auto-ataque que foram desenvolvidas
ao longo do tempo, é a tarefa de uma terapia/análise que busca êxito. Uma
terapia que reconheça a importância de que esse processo seja conduzido através
da compreensão dos mecanismos de defesa implícitos na vergonha e dos recursos
que as técnicas corporais, incluindo EMDR, podem proporcionar ao promover uma
resposta de reorganização neurofisiológica. A ressignificação de sua autoimagem
vem de intervenções que agem desde o reprocessamento das sensações corporais e
do desenvolvimento da capacidade biológica para fluir e pulsar em conjunto. Sem
ferramentas para dissolver os núcleos
emocionais e as sensações mais primárias que fomentam o mal-estar é quase impossível
ressignificar e reverter as bases que sustentam a depressão.
Muito esclarecedor, Antônio Ricardo.
ResponderExcluirGratidão
Grato pelo retorno!
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