Compaixão: uma breve reflexão
Antonio Ricardo Teixeira – Psicólogo clínico
Ouvi o termo compaixão pela
primeira vez, há muitos anos, quando tomei contato com o budismo. Nunca soube
ou encontrei em nenhum texto psicanalítico qualquer referência à compaixão.
Capacidade de amar, sentimentos sociais, empatia, sim. Isso é compreensível uma
vez que todo esforço da psicanálise é no sentido de estruturar um eu capaz de
se relacionar com o inconsciente e com o mundo. Isso parte da ideia de que
existimos separadamente em relação aos outros e ao mundo. Um psicanalista
poderia ainda fazer uma “pegadinha” com a palavra com
(acompanhado)- pai (Lei) – chão (Princípio de
realidade). Porém, no budismo o termo é empregado para descrever outro tipo de
compreensão. Diz-se que quando Sidharta Gótamo se iluminou, ou seja, despertou
para a natureza profunda da realidade humana em si, passou a ser chamado de
buda, que quer dizer, aquele que se libertou de todo sofrimento. Daí, ao
compreender a natureza do sofrimento, e dela se desapegar, também chamado de ignorância,
sentiu uma enorme compaixão por todos os seres e resolveu compartilhar seus
conhecimentos adquiridos através da prática intensa da meditação. Seu
conhecimento não se restringia a uma mera compreensão intelectual. Ele também propôs
um método prático que consiste numa conduta moral e na prática meditativa que
conduz à sabedoria.
Podemos ver a compaixão em três
níveis de compreensão. O primeiro é saber que existem pessoas que a sentem e
desenvolvem ações supostamente benéfica para os outros. O segundo é quando
intelectualmente tentamos definir o termo comparando-o e diferenciando-o de
empatia, simpatia, piedade, pena e solidariedade. Cada um, a partir do seu
nível de compreensão, busca a melhor definição, confundindo ou esclarecendo que
compaixão nunca será uma forma de perpetuar a ideia de que existimos
separadamente, pouco havendo o que nos una, pois a compaixão emerge quando a temos como uma experiência de dissolução das várias camadas que chamarei aqui de “estados
de ego”, que é o terceiro nível de
compreensão.
Tentar buscar definições
intelectuais sem tê-la como uma experiência é dar à compaixão um caráter piegas.
Através do budismo entendemos que alcançar tal nível de compreensão depende de
uma profunda renúncia a se estabelecer como um ego diferenciado e sólido. Precisamos
de suficiente humildade para dizer que, de onde estou agora, não consigo
alcançar tal compreensão. Mas, posso entender o que a compaixão não é. Não é uma
consciência moral, por exemplo, pois essa vem do senso de dever para com o
outro e faz parte de um pacto social no qual tentamos proteger as relações
humanas. Se assim o fosse, a compaixão seria uma tentativa de empurrar para o fundo
da consciência todas as cargas negativas que poderíamos projetar nos outros que
resultariam em agressões frente ao que nos ameaça, negligência diante das
necessidades dos outros, ou indiferença no que se refere ao sofrimento alheio. Isso
colocaria a compaixão numa polaridade, oposta ao que foi acima descrito. Ou seja, a compaixão emerge quando cessam as polaridades.
A compaixão também não é uma
expressão de um ego que se enobrece pelo ideal de superioridade narcísica. Neste
caso, a compaixão se apresentaria como uma forma de inferiorização do outro por
suas necessidades, temores, sofrimentos e condicionamentos limitantes.
Podemos dizer que a solidariedade
é uma expressão do ego que se reconhece tão débil quanto o outro em seu
desvalio. Encontraremos solidariedade entre os torcedores de um time de futebol
que acabou de perder um campeonato. Entre profissionais de saúde assoberbados
pelos traumas da covid. Entre familiares ou grupos que se unem por uma
identidade comum. Também podemos encontrar solidariedade pelos que passam fome,
são vítimas de qualquer tipo de agressão, etc. Um colega de trabalho que foi
humilhado pelo chefe pode receber solidariedade dos colegas. Mulheres podem se
unir solidariamente contra homens violentos. Mas, não podemos dizer o mesmo da
compaixão pois essa engloba a condição humana e sua propensão ao sofrimento. E
também a tudo que vive, incluindo animais e plantas. Não há sectarismo na
compaixão pois ela tem um caráter universal.
Aqui vemos que é mais fácil dizer
o que ela não é, pois, para experimentarmos compaixão no sentido budista,
precisamos de um processo meditativo que nos leve aos planos mais elevados da
mente. Ou melhor: do sistema corpo-mente-energia. Quando a compaixão envolve um
ato de solidariedade, não há nenhum interesse pessoal em tal ato. Psicanalistas, filósofos ou qualquer pessoa que tente elaborá-la, têm a mesma dificuldade de definir compaixão para além do intelecto sem dispor da
experiência meditativa. Só conseguem vê-la em termos intelectuais.
O escritor e terapeuta corporal Sérgio Veleda* (Autor do livro "budismo: a arte de equilibrar-se sobre um fundo vazio"), numa conversa pessoal, lembrou que no "Mahayana budista, sabedoria e compaixão são indissociáveis... a compaixão brota de uma visão clara, limpa, pontiaguda e penetrante da sabedoria. A visão de que nada é sólido e que a vacuidade é o campo da compaixão, no entendimento supremo do sofrimento". Isso nos diz que só a compreenderemos se a tomarmos como efeito de uma transcendência. Porém, tal compreensão costuma ser obliterada pela confusão mental causada pelas certezas criadas pelos sistemas de pensamento que tentam dar solidez ao insólito. Ou pelo que podemos chamar de barreiras narcisistas de contato que se alimentam da cobiça, do apego e da aversão.
Lembro-me de uma estória contada por Claudio Naranjo em seu livro "Entre meditação e psicoterapia". "Um peixe começou a perguntar para os outros peixes se sabiam o que era água. Alguns diziam que já tinham ouvido falar, outros nada sabiam. Então, resolveu nadar pelos mares em busca de uma resposta. Quando voltou já estava velho e uns daqueles que o conheciam lembraram-se dele e lhe perguntaram: você encontrou a resposta? descobriu o que é água? Ele então disse: Sim. Mas se eu lhes disser, vocês não vão acreditar".
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